a falta do direito ao isolamento social e da proteção aos indivíduos empobrecidos em tempos de COVID 19

“A pandemia de desigualdades nos faz ver que, muitas vezes, as recomendações ditas globais não dão conta da realidade de favelas e periferias”- Pâmela Carvalho.

Historicamente fomos invadidos nos anos de 1500 por colonizadores portugueses que, parafraseando a filósofa Judith Butler, utilizaram a escravização e a tortura como “instrumentos” de civilização, concretizando a “barbárie da missão civilizatória”. Iniciava o epistemicídio e genocídio dos povos originários (indígenas), com a destruição dos seus conhecimentos, saberes, crenças, cultura e dos próprios povos originários. Aproximadamente 40 anos depois, entre os anos de 1539-1542, são descritas as primeiras narrativas do tráfico de pessoas negras, pelos colonizadores brancos europeus, traficadas nos conhecidos “Navios Negreiros”, arrancadas de suas terras em África, para serem escravizados (as) em terras brasileiras.

Escravizados (as) por mais de 300 anos, e estou aqui considerando que a escravização estivesse completamente extinta nos dias atuais. Dos povos negros e indígenas foi retirado o direito de serem indivíduos; retirado o seu lugar de sujeito, onde não se permitia que expressassem as suas vontades próprias, seus desejos, ou suas vozes, colocando-os na situação de objeto (“coisificação do sujeito”). Como destaca o filósofo camaronês Achille Mbembe, povos tratados em condições “inumanas”. Algumas leis eram impostas pelos senhores escravizadores, assim como alguns métodos de tortura foram trazidos da Europa, a saber: o direito dos “donos dos escravizados” de estuprar as crianças (meninos e meninas negras), ou quem desejassem entre os escravizados; obrigação para que os suplícios e punições fossem assistidos pelas crianças negras, numa forma de evitar que repetissem os atos considerados “errados” dos negros (as) adultos (as); o direito de matar qualquer escravizado (a), sem necessariamente existir qualquer motivo (para aqueles que acham que existe motivo para matar alguém). Os senhores escravizadores eram “os donos” desses negros e negras - objetificados, e a violência contra estes últimos era consentida pela sociedade da época (e a sociedade atual, o que consente?).
Para facilitar o desenrolar histórico, tomarei a data de 13 de maio de 1888 como o dia em que os escravizados foram considerados “libertos”. Destaco que esta “abolição” não foi sem lutas, mortes e inúmeras tentativas em busca da liberdade do povo escravizado, lembrando algumas tentativas anteriores, como a Revolta dos Malês (1835), e Leis anteriores, como a Lei Eusébio de Queirós (1850), a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885). O povo negro estava livre. Livre? Como assim? Depois de mais de 3 séculos, ou seja, gerações e gerações seguidamente escravizadas, eram então libertos sem moradia, sem terras para cultivar seus alimentos, sem trabalho remunerado para os adultos, escolas para as crianças, os adolescentes ou os adultos. O que fariam com esta “liberdade”? Comer o que, e como? Morar onde? Estudar como? Trabalhar como, e onde? Milhares de pessoas negras nas ruas. O Estado não sabia como resolver.
Criou-se a Lei que criminalizava a Capoeira (1890) e a Lei Contra a Vadiagem (1941); formas encontradas pelo Estado para o início do encarceramento em massa do povo negro e “higienização” das ruas. Se não tinham onde morar, e se não tinham onde trabalhar...estavam nas ruas, e eram presos. Para amplificar o genocídio do povo negro, hospícios foram construídos em diversas partes do Brasil, e destaco aqui o Hospital Colônia de Barbacena (Hospital Psiquiátrico - 1903), que fez parte do Movimento Eugênico Brasileiro (que descreverei rapidamente a seguir), onde 70% dos internos não possuíam qualquer doença mental; 80% eram negros e negras, com descrição de mais de 60.000 mortes no seu período de funcionamento da história brasileira. O que faziam com essa quantidade de corpos e ossadas? Eram vendidos para as faculdades de Medicina, como “indigentes”.
Iniciava oficialmente, por volta de 1910, o Movimento Eugênico Brasileiro. Essa política de branqueamento do povo brasileiro enaltecia e difundia uma suposta supremacia branca europeia, e continuava o processo de diminuição da potência de vida do povo negro e indígena. O Estado Brasileiro estimulava então, oferecendo aos europeus brancos que quisessem vir morar e povoar o Brasil, escolas para seus filhos e filhas, terras para moradia e cultivo, e trabalho remunerado para alguns. Por que não oferecer também estas condições ao povo negro que já habitava há séculos o Brasil, e agora estava “liberto”? Foi negada então, a possibilidade de uma vida vivível (alimentação, abrigo, moradia, acesso à saúde, educação e trabalho remunerado) às crianças, adolescentes e adultos, negros e negras. Deixo que o leitor reflita sobre a formação das favelas, dos subempregos, desempregos e das pessoas em situação de moradores de rua; ou seja, da formação do empobrecimento brasileiro.
Como discursa a filósofa alemã Hannah Arendt, sobre a banalização do mal e consequentemente da violência, na qual “a razão causa barbárie” e técnicas racionais de extermínio são divididas entre os executores, fazendo com que cada executor não se sinta responsável pelo mal causado. Assim, a autora conclui que: a razão, por vezes, tem uma capacidade destrutiva. Aqui conecto a banalização do mal que a sociedade brasileira cultivou em sua história de colonização, com a atualização desta banalização nos momentos da pandemia. Banalizamos os sofrimentos, os empobrecidos, os mortos e seus parentes que têm dificuldades de elaborar seus lutos, nessa pandemia do COVID-19. Filas quilométricas para receber um auxílio que não chega, diante de inúmeras pessoas que foram historicamente “invisibilizadas” pelo Estado (incluindo os ditos “indigentes”, sem certidões de nascimento ou CPF). O necroliberalismo proposto por uns, legitimado por outros, silenciado por centenas e não compreendido por milhares, evidencia esta divisão e banalização do mal, no qual ninguém se sente responsável pelo crescente empobrecimento do povo, acontecendo diante dos nossos olhos, enquanto confortavelmente em nossas casas, assistimos e lemos aos noticiários sobre: “OS OUTROS”. “E daí?”
Isolados (as) em casa, grande parte da população possui como maior preocupação, em como resolver as questões relacionadas aos seus respectivos trabalhos. Considerando isso, me remeto ao pensamento Kafkiano (Franz Kafka), no qual a metamorfose desencadeada em cada um de nós, que nos transforma em um inseto pavoroso, pode ser um processo estimulado por quem detém o poder. Para determinados “soberanos”, qualquer um de nós, a depender do momento, da ocasião, ou da produtividade, pode ser visto e descartado como este inseto do Kafka: A Metamorfose é um Processo. E ainda: alguns se reconhecem e se identificam como este inseto, e corroboram que sejam, a si próprios, eliminados: Afinal, sair de casa para trabalhar, em plena pandemia, pode ser um suicídio; e estimular este ato, do que chamaríamos (a máquina precisa funcionar)?
Como ficará o momento em que esta máquina econômica “atualmente adormecida”, for despertada? J.Rancière chama este episódio de “momento do depois”, e destaca que este tornou-se facilmente a “nova esperança”. Mas para isso, torna-se imprescindível reformar inteiramente nossos modos de vida e repensar nossa relação com a natureza. O filósofo lança uma questão para esse “momento do depois”: “Quem fará tudo o que for preciso fazer para mudar tudo?” Lembrando, como o próprio filósofo destaca, que: “um futuro só se constrói na dinâmica de um presente”. Diversos pensadores e estudiosos, como Ortega F & Orsini M, destacam que ao atingirmos o momento de pós-pandemia, após a diminuição da crise na saúde pública, a consolidação do poder será o principal legado duradouro da pandemia, e que os governos autoritários estão usando este momento da crise do COVID-19 para impor medidas verdadeiramente draconianas.
O que estamos fazendo para evitar que tudo volte como era antes? Deixo aqui esta reflexão, esperando que consigamos construir um momento histórico pós pandemia, melhor do que o momento que a antecedeu. Caso você esteja esperando um momento pós-pandemia, igual ao que você vivenciava, acho que você ainda não entendeu nada...

José Roberto Tude Melo
Neurocirurgião Pediátrico
Membro Titular da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia Pediátrica
Mestre e Doutor em Medicina pela Universidade Federal da Bahia

Referências

1. Arbex D. Holocausto Brasileiro: Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil. São Paulo: 1.ed Geração Editorial, 2013.
2. Arendt H. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: editora Civilização Brasileira, 2018.
3. Butler J. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Rio de Janeiro: editora Civilização Brasileira, 2018.
4. Butler J. Traços Humanos nas Superfícies do Mundo (42). São Paulo: editora N-1, 2020.
5. Carvalho P. Pandemia de Desigualdade (60). São Paulo: editora N-1, 2020.
6. Foucault M. Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão. Petrópolis-RJ: editora Vozes, 2019.
7. Kafka F. A Metamorfose. São Paulo: editora Schwarcz, 2018.
8. Kafka F. O Processo. São Paulo: editora Pé da Letra, 2018.
9. Mbembe A. Necropolítica: Biopoder, Soberania, Estado de Exceção, Politica de Morte. São Paulo: editora N-1, 2018.
10. Mbembe A. Pandemia democratizou poder de matar. Acesso em 31/03/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml
11. Ortega F, Orsini M. Dissecando o Autoritarismo Relutante e Capacitista frente ao Coronavírus no Brasil (31). São Paulo: editora N-1, 2020.
12. Rancière J. Uma Boa Oportunidade? (039). São Paulo: editora N-1, 2020.
13. Safatle V. Bem vindo ao Estado Suicidário (004). São Paulo: editora N-1, 2020.