A criança no contexto da cultura brasileira de violência.
“A vida é falha apenas quando a morte a toma como refém”- Georges Bataille

Por: Dr. José Roberto Tude Melo
Membro da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia Pediátrica
MD, PhD em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia
Texto baseado na aula sobre o tema, apresentada no XIII Congresso Brasileiro de Neurocirurgia pediátrica, ocorrido em Fortaleza- CE 2019.

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 Introdução e metodologia

Falar de violência não é fácil. Escrever sobre violência e começar a entender todo o seu processo histórico foi mais difícil ainda. Contextualizar a cultura da violência vivida em nosso país, e entender o risco que isso representa para as nossas crianças e futuras gerações, foi uma tarefa intensa.
Acredito que antes de falar sobre um tema de grande importância e impacto social, torna-se fundamental conceituar termos como violência, cultura, gentrificação, biopoder e necropolítica, para melhor compreensão do texto que se segue, para que o leitor consiga entender, de forma histórica e progressiva, como a violência fez parte da nossa biografia desde a colonização do Brasil, e continua fazendo parte da formação da sociedade brasileira.
Após o esclarecimento de termos pouco conhecidos na área médica, para tentar ser mais didático e compreensível, iniciarei a abordagem histórica da violência num contexto territorial amplo, considerando o Brasil, passando em seguida para uma região menor, de um estado ou cidade, finalizando numa situação ainda menor, a família. Com isso tentarei mostrar a violência cultural que habita no nosso país, e consequentemente afeta as nossas crianças e adolescentes, nos mais diversos territórios.

Conceitos

A violência consiste no uso da força, do poder e de privilégios para dominar, submeter e provocar danos a outros, sejam indivíduos, grupos e/ou coletividades. A cultura e as formas de solução de conflitos das sociedades determinam quais são mais ou menos violentas 9. Cultura deve ser entendida, do ponto de vista antropológico, como todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos, adquiridos pelo ser humano enquanto membro de uma sociedade 2. No decorrer deste texto, veremos então, que não vivemos uma epidemia, mas sim uma cultura da violência desde o processo de colonização.
Falar de violência é falar de desigualdade e vulnerabilidade social, e consequentemente de gentrificação. Sendo um termo pouco conhecido na linguagem médica, quero aqui incluir a sua definição: “Gentrificação é o processo que altera as dinâmicas de uma região, pela criação de novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local. Isto é seguido de um aumento de custos e bens de serviço, dificultando a permanência de antigos moradores de renda insuficiente para sua manutenção no local cuja realidade foi alterada” 3. A gentrificação consequentemente é um agente contínuo que piora a condição de pessoas em vulnerabilidade social. Vulnerabilidade social significa estar em uma condição de fragilidade material ou moral, de indivíduos ou grupos, diante de riscos produzidos pelo contexto econômico-social. Relaciona-se então a processos de exclusão social e violação de direitos 10.
Destaco para conceituar biopoder e necropolítica, pensadores como Michel Foucault e Achille Mbembe. Biopoder é uma “prática dos estados modernos e sua regulação dos que a ele estão sujeitos por meio de uma "explosão de técnicas numerosas e diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações”. Ou seja, o “domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle”. E necropolítica é considerada como uma “forma diaspórica, assimétrica, opressora, violenta, genocida e racista”, onde se define quem vive e quem está autorizado a morrer 6,7. Dentro deste contexto destaco a definição do filósofo Byung-Chul Han, ainda considerando que o Estado e a sociedade escolhem e autorizam “uma violência do consenso”, trazendo a definição do homo sacer, como: “alguém que foi excluído da sociedade”. Sendo esta pessoa considerada socialmente excluída, a mesma pode ser morta sem que o autor seja penalizado por isso. Representa “uma vida absolutamente passível de ser morta” 5.
Aproveito aqui para posicionar no contexto brasileiro este homo sacer, trazendo para a nossa memória fatos históricos como a escravização de negros vindos da África durante o processo de colonização, a época da Ditadura no Brasil, a situação carcerária e outros atentados atuais, vividos ou observados na nossa atualidade politica, no nosso cotidiano. Em todos esses exemplos a necropolítica agiu - e continua agindo - em diversos segmentos, escolhendo quem vivia - ou vive - e quem deveria - ou pode - morrer.

História da violência: da colonização aos dias atuais

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A história das civilizações, inclusive a brasileira, mostra que a violência sempre esteve presente, dentro de períodos ou épocas, conforme seus contextos. Relembrando brevemente a colonização do Brasil por povos europeus, vale salientar que a violência exercida pelos colonizadores do Brasil pode ser verificada desde o transporte de escravizados negros, nos conhecidos “Navios Negreiros”, incluindo adultos e crianças, sendo estas últimas geralmente arrancadas dos pais e transportadas sem os seus respectivos responsáveis 4,6.
A escravidão, segundo Achille Mbembe, foi uma das primeiras manifestações de biopolítica, onde o escravizado perdia seu lar, seus direitos sobre o próprio corpo e de qualquer estatuto político, e consequentemente uma morte social, considerada uma “expulsão fora da humanidade”. A partir desta condição de “coisificação”, onde o escravizado perdia a condição de humano e virava uma “coisa”, este tornava-se propriedade de seu senhor. O “soberano” poderia matar a qualquer hora, a qualquer momento, de qualquer forma, em qualquer idade, independente se adultos, idosos ou crianças 6,7 - lembro aqui do homo sacer. Na escravização a violência tornava-se, como destaca Mbembe, “um ato de pura destruição visando incutir o terror”, por meio de chicotadas ou tirando a vida dos escravizados, ou mesmo atribuindo uma forma de morte-em-vida, com a perda da identidade e destruição da cultura de um povo 6,7.
Diversos exemplos de necropolítica são descritos na literatura, durante a escravização, a saber: a cultura do estupro das (os) escravizadas (os) negras (os), menores de idade, onde os senhores de engenho, escravizadores, se achavam no direito de estuprar essas meninas ou meninos, alegando que a virgindade das meninas, a eles pertencia. O corpo destas crianças era usado como os senhores de engenho desejassem 4. Esses fatos descritos eram culturais. Culturalmente esse tráfico de pessoas negras era permitido pelos “soberanos”, assim como estuprar as crianças negras. Outras descrições, como a do assassinato aleatório de escravizados, demostram esta cultura da violência: “Quanto mais alto ela gritou, mais ele chicoteou; e onde o sangue correu mais rápido, aí ele chicoteou mais demoradamente. Ele iria chicoteá-la para fazê-la gritar e chicoteá-la para ela ficar quieta” 7.
Sendo assim, constatamos que a escravização, momento de terror histórico da colonização do Brasil, revelou um potencial de violência que antecedeu as grandes guerras mundiais, as quais foram uma extensão dos métodos de massacre, violência e morte, antes designados aos grupos de “negros e selvagens”, e que, com as grandes guerras mundiais, foram expandidas para os povos “civilizados” europeus. A soberania definitivamente impetrava o risco de morte, e expressava-se como o direito de matar 6,7.
Corroborando então os escritos e pensamentos de Achille Mbembe 6,7, se quisermos entender o processo violento que ocorre nos dias atuais, e destaco aqui o nosso território, o Brasil, torna-se fundamental entender a crueldade exercida pelos colonizadores no território brasileiro, no seu processo de colonização. A escravização foi a primeira manifestação descrita de necropolítica em nosso país.
Saindo do macro território do país e adentrando numa região menor, num estado, cidade ou vila, por meio de diversas citações, podemos verificar a violência exercida contra crianças e adolescentes, sobretudo naqueles em vulnerabilidade social. Destaco aqui uma importante obra do escritor baiano, Jorge Amado, em seu livro “Capitães da Areia”, que aborda como tema principal um grupo de garotos pobres, da cidade do Salvador da Bahia, em vulnerabilidade social, vítimas da violência, e alguns deles também violentos, demonstrando violência gerando violência. Vale destacar para exemplificar, descrições dos maus tratos a estas crianças, quando eram pegas pelos policiais da época: “...em vez de conquistarem as crianças com bons tratos, fazem-nas mais revoltadas ainda com espancamentos seguidos e castigos físicos verdadeiramente desumanos”; ou a descrição de uma mãe, endereçada a um grande jornal daquele período: “Eu queria que seu jornal mandasse uma pessoa ver o tal do reformatório, para ver como são tratados os filhos dos pobres que têm a desgraça de cair nas mãos daqueles guardas sem alma”. O escritor descreve com clareza e detalhes, crianças negras e pobres, consideradas violentas, frutos da violência de uma vulnerabilidade e exclusão social 1 - mais uma vez, o homo sacer.
A combinação de poderes disciplinares, biopolíticos e necropolíticos possibilita aos “soberanos” a dominação absoluta sobre os habitantes de um determinado território. Isso ocorre, por exemplo, no “estado de sitio”, onde se admite uma modalidade de crime que não faz distinção entre os indivíduos, e populações inteiras podem ser alvo desse “soberano”. As regiões sitiadas são isoladas e cercadas, a vida diária é militarizada, e as execuções a céu aberto são permitidas, caso assim deseje o “soberano”. Os locais para execução são lugares da vida cotidiana, como escolas, padarias, cafeterias, bares, a rua, onde vítimas de todas as idades podem ser alvejadas7. Como exemplo de tecnologia de destruição aqui no Brasil, podemos citar as milícias, com mecanismos predadores, extremamente organizados, que taxam territórios e as populações que os ocupam.
A violência está presente em cada rua e esquina brasileira, afetando sobretudo aqueles que alguém julga diferente, seja esta diferença de cor, de crença, de classe, de gênero ou de orientação sexual. A violência pautada às divindades, e pela adoração de uma divindade mítica, ocorre entre povos e populações com cultos diferentes, e alguns pensadores a chamam de “Terror Sagrado” 7. Nesta forma de violência impera a verdade e exclusividade que este grupo religioso apoia ou acredita, rebatendo a outros grupos diferentes. Crianças abandonam escolas por causa dessas agressões verbais e físicas.
Racismo, homicídio e suicídio chegam a um ponto de violência idêntico, no momento que se observa no outro um perigo contra a minha vida, cuja abolição biofísica reforçaria meu potencial de vida. Foucault descreve o funcionamento do biopoder como divisor na escolha de quem deve morrer e quem deve viver. Esse poder de seleção entre quem vive e quem deve morrer, pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos e subgrupos e a cesura biológica entre uns e outros 6,7.
Abordando agora um território menor ainda, submerjo na família. Em estudo publicado no ano de 2015, analisando um grupo de lactentes (crianças abaixo de 02 anos de idade), verificamos que, na maioria dos casos, a violência contra estas crianças estava relacionada às famílias onde desajustes como desemprego ou violência doméstica (relato anterior de homens que agrediram as suas companheiras) foram previamente relatados. Mais uma vez, vulnerabilidade social e violência associadas com propagação da brutalidade 8.

Conclusão

Este breve texto não presume nenhum tipo de conclusão, até porque a violência não estará concluída ao final destes escritos. Crianças, adultos e idosos morrem a cada minuto em nosso país, vítimas de uma condição chamada por Achille Mbembe de condicio inhumana, como se todos estivéssemos em uma câmara de gás, onde a qualquer momento poderemos ser vítimas deste processo de morte. 
Agradeço à SBNPed pelo convite para escrever este texto, e espero que de alguma forma afete, ou torne possível uma reflexão, naqueles que se propuseram à leitura.

Referencias bibliográficas
1. Amado, Jorge. Capitães da Areia. 35a reimpressão. São Paulo: editora: Companhia das Letras, 2017 .
2. Cultura. Wikipedia, c2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura>. Acesso em 17, jul 2019.
3. Gentrificação. Wikipedia, c2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Gentrificação>. Acesso em 17, jul 2019.
4. Gonçalves, Ana Maria. Um defeito de cor. 16a edição. Rio de Janeiro: editora Record, 2017.
5. Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. 2a edição. Petrópolis –RJ: editora Vozes, 2019.
6. Lima F. Bio-necropolítica: diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe. Arquivos Brasileiros de Psicologia. 70: 20-33, 2018.
7. Mbembe, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: editora n-1, 2018.
8. Melo JRT, Di Rocco F, Vergnaud E, et al. Trauma craniano por abuso: aspectos epidemiológicos e diagnóstico. Arquivos Brasileiros de Neurocirurgia. 34 (04): 267-273, 2015. DOI: 10.1055/s-0035-1565914.
9. Violência. Wikipedia, c2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Violência>. Acesso em 17, jul 2019.
10. Vulnerabilidade Social. Wikipedia, c2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Vulnerabilidade_social>. Acesso em 17, jul 2019.