Por Dr. Antonio Bellas

Todos ficamos impactados (moradores, visitantes e admiradores da cidade) com a notícia sobre um casal ter sido esfaqueado por um morador de rua de nome “cowboy”, com longa ficha criminal e internações psiquiátricas. Eles não foram assaltados, apenas esfaqueados em um possível surto psicótico do vaqueiro, com o requinte adicional que iriam se casar em 15 dias e estavam muito felizes...

A violência é uma realidade de aglomerados humanos ou animais. Experimente colocar 100 cachorros em um espaço que cabem 20 e adicione a isso uma restrição de necessidade imediata, algo que eles desejem (comida, água, local para dormir). O percentual de morte e dano vai ser mais alto que os nossos índices de homicídio e violência. Agora transfira isso para um aglomerado de 6 milhões (13 com o Grande Rio, com algumas densidades demográficas superiores a Índia...), onde desejos e necessidades são muito mais subjetivos que comida ou água. Nitroglicerina pura (lembram dos desenhos do Papa-Léguas que explodia mais que dinamite!)

Os cariocas lidam com essa realidade há muito tempo, desde o esvaziamento como capital federal (bla, bla, bla, esse papinho para justificar que sempre contamos com esse charme, esses formadores de opinião e tendências, achando que isso iria virar dinheiro ou desenvolvimento econômico) e mais recentemente com o fracasso das UPPs. Somos ligados, evitamos as regiões mais estranhas, desdenhamos de turistas que não conhecem a cidade. Nada disso adianta muita coisa, mas nos enganamos com a efetividade. Achamos que funciona e protege, e mantém os fantasmas à distância.
Alguns elementos da fauna urbana são reconhecidos rapidamente, sem muita dúvida. Em alguns momentos você tem certeza que será assaltado. Carro de vidro aberto dá uma sensação de que o carro de janela aberta é que vai ser abordado. Vários esquemas e truques garantem nossa segurança e asseguram que o vizinho é que vai dançar.
Os moradores de rua sempre foram seres invisíveis, daqueles que fazem parte da mobília urbana. Semelhantes aos postes, lixeiras ou banco de praça. Eles eram inofensivos, pediam uma ou outra coisa, e nem olhávamos na cara, pela garantia de não reação. Eles têm uma dinâmica própria, comem e transam, têm seus animais de afeição (sempre muito bem cuidados, alimentados, mais limpos que os donos), e continuamos passando longe muito mais pelo cheiro do que por medo.
Temos inclusive alguns de estimação. Na esquina onde moro, em Botafogo, temos o “Mureta” (não me pergunte o porquê do nome porque eu não faço a menor ideia!). Ele é bem forte, nunca emitiu nenhuma palavra, está sempre deitado ou varrendo o pequeno quadrado de calçada que mora, não aceita nem dinheiro nem comida. Nunca o vimos usar o banheiro, parece usar a mesma roupa há anos e quando não está na sua esquina, nos sentimos inseguros. Quando começa a chover, a primeira coisa que vem à cabeça da minha mulher é se o Mureta vai ficar bem, se ele vai se molhar. Não o ajudamos (até porque ele não dá abertura...), mas também não o repelimos. Ele simplesmente está lá. Faz parte da paisagem...
Existe um ditado no interior de Minas Gerais que diz “se vaca soubesse a força que tem, não tinha um fazendeiro vivo”
O cowboy deu voz aos invisíveis. Levou a relação que temos com essas pessoas para outro estágio. E nós ganhamos mais uma coisa com que nos preocupar e temer. Ontem passei pelo Mureta. Ele estava na mesma posição de sempre, mas quando virei as costas, eu juro que ouvi um mugido...